Interferências do futuro

Autor

Juliana Prediger

Publicado em

22/07/2021
1 Comentário

Hoje pela manhã nossa plataforma de pesquisa recebeu um áudio com uma conversa entre algumas crianças. Não sabemos como ocorreu esse envio, já que ainda não dispomos do recurso de envios por áudio. Ainda que marcado por alguns chiados, o conteúdo das conversas pôde ser ouvido nitidamente e nos faz desconfiar fortemente que se trata de uma captação de áudio do futuro. Segue abaixo transcrição do conteúdo:

– Anda logo, Francisco! Alguém vai ver a gente!

– Calma, cara! Meu tênis desamarrou! Vou jogar a bola pro outro lado. Pega!

– Vocês demoraram, heim? Francisco, Gui e Pedro, vocês jogam contra nós quatro!

Depois de uma hora de jogo, os meninos descansam na sombra do antigo pátio, com as marcações de campo desbotadas.

–  O que eles guardam nessas salas?
– Lixo eletrônico, Gui. Tudo que é proibido jogar no lixo comum.
– Minha avó trabalhou aqui. Ela era professora. Ela conta cada história… Dentro dessas salas ficavam as crianças e elas eram proibidas de sair pro pátio.
– E por quê tinha pátio então?
– Ah, tudo tinha horário pra acontecer.

Um por um, os meninos começam a se conectar aos aplicativos baseados em projetos interdisciplinares da Global Cloud School, que enviam resultados imediatos aos pais e professores, através de diversos gráficos que dimensionam a “evolução” da aprendizagem individual, comparada às demais crianças da faixa etária, à região do país, à classe econômica, ao continente e ao contexto global.

Gui e Pedro se despedem dos outros meninos, pulam o muro da antiga escola e retornam à rua, onde continuam a conversa.

– Mas minha avó sabia o nome de todos os alunos dela de cabeça. E dos pais dos alunos dela também. Ela lembra deles até hoje, acredita?
– Não pode ser verdade isso.
– É verdade sim! E eles lembram dela. Teve um dia que eu estava na rua com ela e um homem de meia idade gritou: professora! Ele tinha sido aluno dela no primeiro ano! Eles ficaram conversando. Eles lembraram de um tempo em que ela levava as atividades em folhas de papel impresso na porta da casa dele uma vez por semana, porque a escola estava fechada.
– Nossa!!!
– Sabe, Gui, quando eu crescer, eu quero ser professor também. Mas não aqueles que trabalham na Global Cloud School, preparando materiais e projetos para todas as crianças do mundo. Eu quero ser professor de uma Windy’s School, em uma cidade pequena, transformando esses projetos que os caras fazem em alguma coisa que as crianças entendam e aproveitem de verdade.
– Mas eu aproveito quase tudo da Global! Acho eles muito melhores que os da Windy.
– Mas, Gui… Eles parecem legais. Mas falam de coisas que não tem a ver com a nossa cidade. Que não tem a ver com a gente… Essa coisa de reflorestamento da Amazônia por exemplo. A gente não sabe nem como manter uma planta viva. Tu sabe? A minha avó ensinou muita gente a plantar durante a pandemia do Covid-19 em 2020…
– E por quê tu vai esperar crescer pra virar professor, Pedro?

– Ah, porque não vale a pena ser professor criança. Meu primo começou a trabalhar direto com o pessoal da Finlândia aos 12 anos. Eles queriam alguém da periferia que morasse no Brasil pra dar suporte aos projetos globais. Eles viviam fazendo perguntas pra ele, mas só perguntavam o que eles queriam saber. Não escutavam o que o cara tinha pra dizer de verdade, o que ele achava das coisas. E o meu primo é fera, conhece toda a comunidade do Baixo, que deve ter uns 11 milhões de habitantes. Capaz de ser o tamanho do país deles. Tu acha que era só porque meu primo era pobre? Era também porque ele é criança. Até hoje os adultos duvidam das crianças, mesmo precisando delas.

– Mas tu acha que esses caras não tem preconceito com gente mais velha também? Minha tia tem 30 anos e trabalha num centro educacional regional. Ninguém escuta o que ela diz. Desde que criaram a legislação contra o etarismo, e preconceito contra pessoas de diferentes idades virou crime, muita coisa mudou, mas ainda é difícil, viu?
Que coisa louca, né, Gui. Minha avó é bem velinha e a gente adora conversar. Seria legal se a gente criasse um jeito das pessoas se entenderem, sei lá… um dispositivo intradérmico, um implante…

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Maria Carolina
Maria Carolina
editor
3 anos atrás

Companheira, que curioso. Duas crianças destas aí parecem ser daqui de casa!

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