Enquanto as narrativas distópicas ganharam contorno no século XX, o adjetivo “distópico” tornou-se a definição mais adequada e frequente no século XXI, especialmente a partir de 2020. Disseram, nos primeiros momentos avassaladores da Pandemia – quando o problema ainda estava em outro continente, devastando os colonizadores -, que sairíamos melhores, que aprenderíamos muito. Mentira! Devastados pela morte, seguimos os mesmos. No Brasil, tudo pior. Em nosso território – que já se apresentava como uma distopia política, bem à moda “1984” – a Covid-19 foi incapaz de interromper nossa cegueira e, diferentemente do que nos disse Saramago, seguimos cegos, sem ver, sem poder reparar. Não reparamos a diferença social ou a indiferença diante do outro. Mesmo mergulhados em dor ou flertando com a tristeza, as instituições se mantiveram, os prédios seguem de pé, entre eles, as escolas.
As escolas seguem onde sempre estiveram. Os professores e as professoras, embora revirados, seguem onde sempre estiveram: habitando o verbo esperançar. A escola sem os e as estudantes é apenas um conjunto de tijolo, tinta e cimento. Sem estudante, não há professor, não há professora. Sem encontro, não há mediação. O complexo cenário distópico teve fases distintas: do isolamento pleno à entrega de folhas soltas, sem voz ou olhar, sem humanidade. Depois, professores e professoras forma convocados – como se prestes a lutar uma guerra – a habitar as escolas – muitas das quais ainda estavam sem estudantes, que se mantiveram em casa – com sorte, diante de um computador, frequentemente, distantes de tudo e de todos, desconectados, apartados.
O lacunar resumo não contempla minha trajetória: eu, professora, deixei o prédio da escola em Março de 2020 e até hoje, Setembro de 2021, não retornei. Durante quase um ano, conversei apenas por e-mail com os e as estudantes. Ou melhor, “conversei”. Você, leitor, leitora, já tentou trocar e-mails com estudantes de sétimo ano? Garanto: não é fácil! Meus materiais ficaram lindos – aos poucos, aprimorei layouts e passei a prever um interlocutor, sempre começando com “olá, pessoal”. Em geral, a resposta foi o silêncio. Em 2021, do arquivo em PDF, nossa escola passou a ser o Moodle e o Google Meet. Ah… a alegria de ver os e as estudantes. A alegria de ouvir a voz de cada e de cada uma… Mas durou pouco! Você, leitor, leitora, já tentou manter o engajamento de estudantes de sexto ano, após um ano de pandemia, durante meses? Eu digo: é impossível. As carinhas faceiras deram espaço a bolotinhas com fotografias; as muitas vozes tornaram-se poucas vozes. Um prédio, mesmo com estudantes e professores e professoras, se não promover encontros, é apenas um prédio e não uma escola.
Desde março de 2020, não estou na escola, mas ainda sou professora. Ainda faço chamada – “Por favor, pessoal, estou em outra tela, me digam se o/a colega responder no chat”. Ainda preparo materiais – mais simples, mais sucintos. Ainda elaboro propostas de produção textual, ainda promovo momentos de leitura em voz alta e de debate daquilo que foi lido. Ainda sou professora, mesmo atravessada por uma tela, mesmo sem ver 80% dos estudantes. Ainda sou professora – porém sem minha mala de livros, sem visitas à biblioteca, sem carimbos decorativos nas correções.
Ainda sou professora, mas estou partida. Estamos. Partimos de um tempo passado e de uma ideia de escola cuja estruturação tinha muitos problemas. Partimos sem destino, porque ninguém consegue planejar o amanhã. Estou partida ao meio, porque distante dos e das estudantes. Se eu, adulta, estou partida, como estão meus e minhas jovens estudantes? Como é habitar a juventude e ser vista e ouvida apenas pela lente do computador? Estamos partidos e partimos para o antigo prédio, ao qual damos o nome de escola.
Toda distopia mantém um rasgo utópico. Sendo assim, olho – vamos olhar juntos e juntas! – para o prédio da escola (cheio de marcações no chão, setas de ir e vir, potes de álcool em gel) e repenso o que é ser quem sou, professora.
Olá, Atwood. Fui tomado por uma série de questões ao acompanhar o contexto distópico que pintas. E ao escrever agora esse “que pintas” me lembrei também do Picasso dizendo que pintar Guernica é diferente de produzir o contexto que permite pintar Guernica.
Acho interessante que tu apontas uma série de movimentos para tornar uma vivência possível e vivível (e até aprendível) no meio do pesadelo, uma série de aprendizados para ir construindo possíveis, mesmo que no cenário de terra praticamente arrasada: aprimorar os layouts, prever interlocutores, até combinar parcerias nas combinações com os alunos para acompanhar as diversas telas.
Realmente, tem coisas ainda a aprendermos a fazer enquanto professores para viver essa onda (e o que virá de desconhecido após ela). Aprender, ainda que partidos.
Muita honra ter a Atwood em nossa pesquisa, obrigada por compartilhar a narrativa! 🙂
Fiquei pensando em como se constituiu ao longo do tempo essa visão de terreno arrasado, cenário distópico, para a escola, no qual a pandemia de alguma forma é o fenômeno que conseguimos ver e nomear (algo como um mundo devastado por geleiras que se desprendem, derretem… esse é o fenômeno que conseguimos ver, mas muitas coisas fizeram parte dessa história).
Tua escrita me fez lembrar da música do Jorge Aragão “nem que faça um tempo ruim não se sinta assim só pela metade”, diz ele. Mas como lidar com essa sensação de ter uma parte de si levada né? Penso que narrar essa história de ser docente na pandemia conecta um passado e futuro, ajuda a visualizar essa transformação, olhar pra essa trajetória e recompor o que se foi e o que foi construído. E o ser professora vai carregar transformações que a pandemia provocou!
Olho contigo pra esse prédio que está logo ali, se preparando pra ser novamente habitado, e me atrapalho um pouco ao ver esse universo prenhe de possíveis!