Memórias-fragmentos da pandemia: a cozinha torna-se espaço de trabalho

Autor

Tereza

Publicado em

31/05/2021
6 Comentário

Cada um de nós é constituído de memória-fragmentos que nos atravessam diariamente, nos ajudando a construir novos significados para nossa vida. O movimento de escrever sobre nós mesmos é uma forma de nos reencontrarmos com nosso eu interior, revisitando caminhos percorridos e vividos que foram fundamentais para nos tornarmos o que somos hoje.

Recordo-me que em março de 2020 a escola em que trabalho mudou de uma forma brusca e inesperada, porque com a circulação do novo coronavírus, todos tivemos que ficar em casa, em isolamento, o que gerou muitas incertezas e dúvidas de como seriam os próximos dias.

Como professora de uma turma do 5º ano do Ensino Fundamental, em uma escola do campo no município de Domingos Martins/ES, logo me perguntei como iria ser o meu trabalho enquanto professora, já que a escola ficaria fechada e teríamos que lecionar por meio do uso de variadas ferramentas tecnológicas.

As reuniões que antes aconteciam de forma presencial, passaram a ser realizadas por meio do Google Meet, na qual todos nós tínhamos que dialogar a respeito dessas mudanças que estavam acontecendo e como iríamos continuar nosso trabalho pedagógico diante dessa adversidade nunca antes vivenciada.

Em cada reunião que acontecia, éramos provocados a pensar em uma reestruturação de nosso plano de aula para adequar a essa nova realidade que estava sendo imposta. Em meio a esses atravessamentos, comecei a me perguntar como se daria meu trabalho enquanto professora, pois, conhecendo meus educandos e suas famílias, sabia que a maioria não possuía computador, internet, tendo, somente o smartphone dos pais como única forma de comunicação.

Em poucos dias, minha cozinha se tornou minha sala de aula, meu local de trabalho, pois passei a utilizar a mesa como apoio para meu computador e livros, produzindo naquele espaço meus planos de aula e minhas atividades escolares. Por estar em casa o tempo todo, minhas refeições aconteciam na frente do computador, pois em algumas vezes, estava em meio a reuniões que se estendiam durante horas, discutindo e dialogando alternativas para que os educandos continuassem a aprender, mantendo contato com a escola.

Para que as famílias pudessem ter acesso as atividades e um canal aberto de diálogo com todos nós professores foram criados os grupos de whatsapp para ampliar a comunicação e aproximar a família da escola.

A criação desses grupos se apresentou como uma estratégia para que as atividades pudessem chegar até os estudantes, mas iniciou-se aí um processo que gerou cansaço e estresse para mim.

Digo isso porque meu telefone não parava de tocar, eram muitas mensagens, ligações, estudantes querendo tirar dúvidas, a equipe pedagógica constantemente nos pedindo documentações e marcando reuniões online que precisávamos participar.

Mesmo a escola criando um horário para atendimento das famílias e dos estudantes, como relatei, a maioria tinha somente o smartphone dos pais e por isso, as mensagens chegavam em diferentes horários e principalmente a noite, quando os pais chegavam do trabalho, assim, muitas mensagens chegavam e ligações eram recebidas em diferentes horários, exigindo de mim a disponibilidade em poder atender e auxiliar nas dúvidas.

Com isso, minha vida pessoal e profissional se entrelaçou de uma forma que passei a me dedicar em período integral para as atividades escolares. Como alguns estudantes faziam as atividades e enviavam as fotos para o meu celular, precisava fazer a devolutiva por meio de áudio, vídeo chamada ou por escrito e, após essa intervenção, apresentar as imagens para a equipe pedagógica da escola para comprovação de nosso trabalho e da presença do estudante.

Algo que sempre me entristeceu foi que a secretaria de educação nunca nos perguntou se tínhamos computador e internet para atender aos estudantes, pelo contrário, sempre nos cobraram muito, tínhamos que interagir nos grupos de whatsapp para comprovar nosso trabalho, o que me deixou entristecida, porque pelo fato de estarmos em casa surgia a dúvida se realmente estávamos trabalhando, precisando sempre comprovar o nosso trabalho.

Muitas vezes, queria apresentar aos estudantes os conhecimentos por meio de vídeo aulas ou até vídeos do youtube, por exemplo, mas estava aí um grande obstáculo: a maioria não tinha acesso à internet e quando tinha era à noite, fora do meu horário de trabalho, por isso, grande parte das atividades se limitava a leitura e escrita, abordando ali conhecimentos e explicando as dúvidas para aqueles que procuravam por meio do whatsapp.

Situação bem diferente quando estávamos na escola, porque posso levar esses vídeos para os estudantes e promover discussões com eles, o que acontecia raramente nesse período de pandemia, pois nem todos tinham acesso à tecnologia.

O ano de 2020, por meio do trabalho remoto foi muito cansativo para mim enquanto professora, pois foi preciso o uso constante da tecnologia por meio do smartphone e do computador, exigindo de cada mim horas de dedicação e participação em reuniões online. É nítido que a carga de trabalho aumentou muito e o fato de vivermos em isolamento social, tornou a nossa casa um local de descanso e de trabalho, me provocando a fazer essa separação, o que na maioria das vezes não aconteceu, pois para dar conta de muitas atividades e documentos burocráticos, tive que trabalhar também no final de semana.

Nós professores sempre trabalhamos muito, mas a pandemia ampliou nossas relações, pois eu cheguei até a casa de alguns dos meus educandos por meio da tecnologia, mas, isso tudo me fez perceber que ainda existe muito a se fazer enquanto escola para que todos tenham acesso ao saber, principalmente nos espaços campesinos, onde devido a geografia, a tecnologia ainda não chegou.

Essa nova forma de conceber a educação em tempos de pandemia também me motivou a estudar mais, pois, por meio de todas as discussões dentro do cotidiano escolar, percebi o quanto eu ainda preciso estudar, ampliar meu repertório de leitura e conhecimento dos aspectos que norteiam a escola, por isso, mesmo diante de algumas dificuldades, a ampliação dos diálogos foi positivo e me motiva a continuar estudando, pois preciso ser pesquisadora no ambiente educativo em que atuo para poder contribuir com a educação, que está em constante mudança.

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Sabrina Stein
Sabrina Stein
Responder a  Cristiane Bremenkamp
3 anos atrás

Ao ler seu comentário, fiquei me perguntando sobre seus questionamentos, pois devido aos atropelos do dia-a-dia e do labor escolar, não está acontecendo esses momentos de partilha e diálogo que tanto se faz necessário… Precisamos tecer formas de enfrentamento coletivos para nos ajudarmos mutuamente…

Daniel Fernandes
Daniel Fernandes
Admin
Responder a  Sabrina Stein
3 anos atrás

Olá, Sabrina. Realmente, preocupa muito a ausência ou escassez desses momentos de partilha, até por que é por eles que o trabalho se constrói e se reinventa. Talvez possamos aqui narrar e trocar estratégias e reinvenções dos mesmos. Como tu bem o dizes, é preciso tecer formas de enfrentamento coletivos: como temos tecido essas? E, caso não tenhamos, de que forma podemos fazer isso, como mobilizar nossas forças e recursos para poder trocar mais, sustentar esses espaços?

Sabrina Stein
Sabrina Stein
Responder a  Daniel Fernandes
3 anos atrás

Olá Daniel! Com certeza precisamos tecer juntos formas de enfrentarmos os desafios diários na educação e criarmos espaços para partilhar aquilo que nos afeta. No espaço educativo onde me faço professora, acredito que a criação de um momento para conversarmos sobre a pandemia e o que ela tem modificado em nosso fazer pedagógico seria muito importante para que todos pudessem se sustentar e dialogar a respeito. Acredito que é preciso narrar aquilo que estamos vivenciando, pois quando compartilhamos o que sentimos e quando ouvimos o outro, nos fortalecemos e nos formamos.

Daniel Fernandes
Daniel Fernandes
Admin
Responder a  Sabrina Stein
3 anos atrás

Então, Sabrina, me parece que é por aí mesmo, e talvez no exercício de tecer estratégias, possamos tentar fazer uma dobra nesse tecido da experiência para fazer uma superfície mais forte a partir da narrativa. Tenho ouvido, assim como tenho lido em outros dos relatos que recebemos aqui também, da importância, do alívio, até do respiro e alegria que são esses espaços de trocas de narrativas e as trocas que nelas acontecem entre pares. Talvez nos caiba, até pra inspirar aos outros, narrar como esses espaços e essas trocas aparecem. A partir de que questões, com que chamadas, a gente consegue acionar no outro o desejo de participar da troca? Que tempos, espaços, instrumentos sustentam isso? Como esse convite/chamado é recebido? Como o professor, atucanado com as urgências empecilhos desse tempo, consegue furar a correria do tempo pra ajudar e ser ajudado, produzir comunidade com seus pares? Isso tudo também é trabalho, e tem toda uma tecnologia afetiva aí que precisa aparecer enquanto trabalho e cuidado do ofício.

Sabrina Stein
Sabrina Stein
Responder a  Daniel Fernandes
3 anos atrás

Com certeza Daniel nós precisamos ir além e pensar, dentro do contexto escolar como essas chamadas acontecem porque muitas vezes, narrar o que sentimos é um “respiro” para a alma em meio a tantas coisas que nos atravessam e afetam. Eu acredito que muitas vezes falta espaço para que esses relatos aconteçam, pois os momentos coletivos muitas vezes acontecem para discussão de fatos do cotidiano escolar que envolvem questões burocráticas do ofício docente, porém, o professor não é convidado a “falar de si” de suas experiências. Nós, que aqui estamos, compartilhando nossas experiências, precisamos levar esses questionamentos para o espaço escolar que trabalhamos.

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