INFILTRADO (OU FUGITIVO?)

Autor

Porfirio

Publicado em

07/10/2021
3 Comentário

Quando recebi o convite fiquei até meio ressabiado.

– E aí, topa? Vai ser de manhã.

Eu, professor que sigo trabalhando de modo remoto, visitar uma escola que já retornou às aulas presenciais desde junho… e, ainda por cima, fazer uma apresentação artística para os estudantes?

– Vou pensar por aqui.

Lista de preocupações: 1) Será que pega bem? 2) Não posso comentar que estive lá; 3) Levo minha garrafinha de álcool em gel; 4) Não posso postar nada a esse respeito para que meus alunos atuais não vejam que na escola onde atuo eles não têm aulas presenciais, mas em outra escola eu estou presente.

O dia e o turno para tanto me eram possíveis, só precisaria realizar um ajuste em minha rotina de trabalho diária para escapar um pouquinho até essa escola. Foi o que eu pensei, mas demandas do trabalho remoto surgiram e impossibilitaram o meu aceite ao convite feito com empenho por uma grande amiga, professora nessa escola que já habitei em minha trajetória docente.

Rever colegas, caminhar novamente pelos corredores e salas, encontrar com ex-alunos e ex-alunas… Saudade e vontade, mas, infelizmente, não aconteceria. Paciência – e chateação, não vou negar.

Mas quando algo é para acontecer, não há adaptação e remanejo que não consigam dar um jeitinho de fazer acontecer. No dia do evento, depois de eu ter informado que não poderia estar presente, recebi uma nova proposta:

– Vem à tarde, mais para o final do turno escolar. Tu pode?

– Hoje à tarde. Espera, deixa eu ver aqui.

Mentalmente, repassei os compromissos da tarde. Enquanto pensava, uma foto apelativa surgiu na tela do celular: três amigas professoras com olhos pidões e muito carinhosos pediam pela minha ida à escola. Nem pensei mais. Abdiquei do último dos meus compromissos daquela tarde (um que não acarretaria tanto impacto para outras pessoas) para escutar meu desejo pulsante de contato humano com uma escola no contexto presencial. Iria matar a saudade e a vontade!

– Tá bem, eu vou!

– Oba! Te pago o Uber e te dou carona de volta.

Cheguei à escola por volta das 16h. Fui recepcionado pela porteira, que eu não conhecia. Ela me indicou o caminho para chegar à sala da Diretoria, que eu já conhecia – ou não. Um arco de balões enfeitava as portas de entrada para o saguão da escola. Era a “Semana do Diferente” e foi justamente por essa razão que me convidaram para estar lá. Ser diferente, fazer diferente, fazer a diferença…

Me perdi um pouco nos fluxos de trânsito dentro do prédio, pois setas adesivadas no piso indicavam os sentidos do deslocamento. Ao entrar, peguei a contramão. Ajustei a direção e segui as indicações até chegar na sala da Direção. Lá, um familiar de estudante conversava com a Supervisora. Cumprimentei-a com os olhos e fui convidado a adentrar a sala, ficando em pé em uma das laterais, aguardando um instante até poder falar com ela. A janela da sala tem vista para o pátio da escola e, enquanto aguardava, pude ver que o evento programado estava quase iniciando. Sobre um palco construído antes da Pandemia e que estava sendo inaugurado naquele dia, algumas professoras ajustavam caixa de som, microfone, um painel decorado e, entre uma arrumação e outra, davam indicações ao grupo de estudantes que estava em pé na frente do palco sobre onde deveriam se posicionar.

Meus olhos assistiam à cena como observadores de uma ação que me é familiar: organizar uma apresentação na escola, um fazer há tanto tempo adormecido. Pela fresta da janela, tornei-me um observador, um investigador daquela situação. Pelo espaço do pátio, alguns estudantes (todos vestindo máscaras de proteção) distribuíam-se em grupos por turma. Cada turma, como pude perceber, tinha poucos estudantes. Muitos deles buscavam o canto de um prédio, único espaço com sombra naquele horário da tarde. O volume da caixa de som não era suficiente para ser escutado por quem estava mais afastado do palco. Tentativas de falar sem microfone foram feitas sem sucesso, pois o som espalhava-se e perdia-se facilmente pelo espaço aberto do pátio escolar.

Será que já estava na hora de eu ir até lá e aguardar pelo momento da minha apresentação?

Voltei minha atenção para o interior da sala da Direção, onde estava. Outros familiares de alunos conversavam com a Supervisora. Pelo que compreendi, o dia havia sido de conselho participativo e aqueles pais e mães buscavam por informações. Aguardei mais alguns minutos e decidi me dirigir até o pátio da escola. No caminho, uma professora com quem já havia trabalhado me cumprimentou.

– Olá, boa tarde.

– Oi, tudo bem?

Por alguns instantes ela fixou atenção no meu olhar. Depois de alguns anos, meus cabelos haviam crescido e a máscara escondia boa parte do meu rosto.

– Oi! Pensei que tu fosse um pai de aluno!

Depois de rir do acontecido, conversamos brevemente e fui com ela até o pátio. Lá, encontrei com outro colega professor. Nosso aperto de mão foi substituído por um toque com a mão fechada, como indicam os protocolos. Trocamos algumas palavras e saudades. Foi bom.

Olhando ao redor, não reconheci estudantes dos quais já havia sido professor, afinal fazia anos que já não era docente naquela escola.

O evento começou com a leitura de um poema escrito por uma estudante, comentando sobre o respeito às diferenças que nos compõem. Na sequência, um pequeno grupo de uma turma das séries iniciais movimentou-se ao ritmo de uma música na dança que prepararam para a apresentação. Após esse momento, fui até a parte detrás do palco e, em seguida, fui anunciado pela Diretora da escola, a amiga que havia me feito o convite – ou intimação – para estar lá. Ao subir no palco, olhei para aquelas crianças e jovens apreciadores de um evento escolar. De um grupo de estudantes que estava mais afastado do palco veio o reconhecimento:

– Olha lá o “sor”!

Pois é, o “sor” estava de volta.

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MARCIA CAETANO DOS SANTOS NEVES
MARCIA CAETANO DOS SANTOS NEVES
3 anos atrás

Acredito que quando a sua figura apareceu no palco , muitos corações foram disparados de alegria em rever um professor ao vivo , o que nos comove é a alegria e a espontâneidade de cada um deles .

Fernanda Spanier Amador
Fernanda Spanier Amador
editor
3 anos atrás

“Sor”! Quanto valor há no fato de ser reconhecido por aquelas pessoas com quem realizamos nosso trabalho docente!!!! E de ser reconhecido, sobretudo, por entre todos os esforços que empenhamos para realizar nosso trabalho em meio aos desafios de “se fazer Sor” na pandemia…Onde estava o “Sor”? Onde estava a “Sora”? … acho que em cada gesto de contar a história de seu ofício, enquanto o mantinha vivo, durante e pela pandemia…

Juliana
Juliana
editor
3 anos atrás

tipo um baile de máscaras
os olhos ligados, sorrindo
reconhecer os olhos, o jeito de andar.
estranhar os cabelos, os envelhecimentos dos “pro”
os olhos desconfiados das gurias.
a Malu tá beem mais gata. 
O que fazer com as mãos? embriagar de álcool pra disfarçar o não-saber-o-que- fazer-com-elas no descostume do encontro.

– Olha lá, quem ta lá, pai!!! Aeeee sor!

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