Recebo uma ligação, a voz do outro lado está aflita. O céu acabara de desabar sob os ombros do amigo-professor que me endereça “uma chamada”. Ele me diz com a voz trêmula e hesitante que a mãe de seu filho – um menino em idade escolar – acabara de falecer. Como contar isso ao menino? Como ele poderia entender? Que modos há pra minimizar a dor da criança? O amigo está profundamente triste, abatido e aflito. Endereça-me inúmeras perguntas: “Levo ou não levo meu filho ao enterro?” A fala está entrecortada, respira ofegantemente. E em seguida: “Ele precisará de atendimento psicológico?”.
Infindáveis questões, tudo parece exigir muito cuidado e delicado manejo neste momento de dor. Enquanto pergunta ele aguarda também por respostas precisas, pois pensa que eu, “psicóloga”, poderei lhe dar algum bom conselho, alguma orientação de como agir corretamente. Estou atenta do outro lado da linha telefônica, mas tampouco imagino o que fazer, nem posso dizer de antemão o melhor caminho a seguir. Mantenho-me inteira, aguardo e escuto, acolho as lágrimas. Sustento a presença, disponibilizo-me. Meu corpo está quente, vivo. Mas não tenho um caminho preciso nem uma direção “técnica” a apontar… O que dizer?!
Para meu alívio, percebo que sutilmente a sensação de apuros em sua voz aos poucos se decanta e ele “apura” os acontecimentos de modo mais adensado. O regime de urgência parece lentamente afrouxar. O endereçamento à “especialista psi” cede lugar à lateralização de uma relação de amizade. Fazemos esforços juntos e ensaiamos maneiras de ver caminhos. Ele me conta que a mãe do menino junto com o menino participava das atividades em uma horta comunitária. Respira fundo. Chora. Aos poucos, sua voz deixa de estar tão trêmula e as palavras parecem abrir vias de inteligibilidade que buscam traçar uma rota, um percurso de pensamento e cuidado.
O amigo-professor me diz que a grande horta era o quintal do menino: tomate, chuchu, alface, rúcula, cenoura, rabanete, ora-pro-nobis… O menino de pés descalços diariamente fazia a rega com sua mãe. Além disso, uma vez por semana acontecia um mutirão organizado pela comunidade e, nestas ocasiões, algumas mudas eram preparadas e doadas, adubava-se a terra, e também rancavam-se as plantas que jaziam mortas. Ciclos de vida e morte eram visibilizados e expressados. Vez ou outra um besouro aparecia morto no quintal, às vezes outro bichinho qualquer. Havia muitos por ali! A vida pulsava e junto com ela os sinais da finitude se anunciavam também, tão indissociáveis e inter-relacionados como as duas asas de um pássaro.
Percebo que a explicitação de elementos da terra em sua fala passa sutilmente compor – de modo afetivo e corporificado – uma direção de cuidado a ser trilhada. E se eu for à horta brincar com ele? Sentar lá no banco da horta e conversar, usar esses elementos dos ciclos de vida e morte dos bichos e das plantas como apoio? Noto que um percurso de cuidado pouco a pouco se traça em sua voz e o “chão” parece novamente estar sob seus pés. A terra lhe ampara e aterra, indicando caminhos possíveis de lida com a finitude.
Ciclos da vida e morte nos convidam a encarar os sinais de nossa própria finitude, não é, companheira? E quando o céu desaba e a terra estremece, nos perguntamos como contar aquilo que nos passa. Como nos manter inteiros, como produzir corpos em disposição quente e escutadeira, como ora-pro-nobis… matinho que cresce à toa, pra todo canto e ainda oferta generoso alimento. Mas não seria mesmo isso? algum indicativo de resistência? tecer ligações, escuta quente quanto possível, dar lugar à voz trêmula para que em adensamento, desafogue a urgência e favoreça uma zona de respiro? Uma rota em percurso, uma trilha por onde aterrar os pés e encontrar asas de passarinho? Parece-me que este menino em idade escolar que perdeu sua mãezinha e tem um pai aflito, hoje pode revelar outros tantos meninos neste Brasil imenso. Uma chamada, um laço, ainda que não sejam quase nada, podem servir de esteira para prosseguimentos. E isto tudo não é gratuito, sustenta-se em um trabalho imenso!