Tudo passa… ou como não chorar?
Estamos em meados de outubro de 2021, e desde março do ano passado sinto necessidade de pensar que “tudo passa”. É uma necessidade de verbalizar essa expressão como forma de tentar acolher as pessoas que me cercam e que a mim se dirigem angustiadas com toda essa situação da pandemia, situação essa que esperávamos que passasse com uma velocidade muito diversa da qual realmente se efetivou. Repito essa pequena frase para eu mesma. Nos últimos dias tenho sentido um misto de exaustão, mas com lampejos de alegria. A exaustão vem de um cansaço que não se dissipa com as horas de sono, que se junta à um medo de não dar conta de fazer o que preciso fazer, seja enquanto professora, filha, amiga, colega, namorada, estudante, pesquisadora… parece que sempre tem algo distante de ser finalizado. O pó se acumula em muitos cantos da minha casa, e a lista de e-mails, bem como a pilha de atividades impressas só tem aumentado, projetos novos a ser elaborados, planilhas a ser preenchidas e revisadas, novas atividades a serem elaboradas, mensagens de whats a ser respondidas. Só consigo pensar que tudo vai passar, que esse tempo vai passar, que meu trabalho vai aos poucos retomar seu ritmo mais suave, menos opressor, com mais sorrisos e menos máscaras.
Em meio à esse cansaço, os ciclos da vida e dos encontros que a escola provoca parecem ir aos poucos retomando seu ritmo, a celebração da vida na escola tem ganho mais espaço: esses dias foi feita uma pequena homenagem de despedida para uma colega que está iniciando seu processo de aposentadoria, após 38 anos em sala de aula, em escola pública. Ficamos em círculo ao redor dela, ouvindo ela falar das motivações que a levaram a trabalhar por tanto tempo e o quanto a pandemia mudou sua forma de ver o mundo e a profissão, foi um momento de encontro que desde o início da pandemia ainda não havia acontecido, foram muitos minutos de olhos nos olhos, de tantos colegas que estávamos vendo juntos através da mediação das telas, em intermináveis reuniões virtuais. Não tinha como não chorar. Olhávamos nos olhos uns dos outros, juntos. Mas aquele abraço acolhedor dado em todos colegas, como aquele dado ao retornar para a escola no início do ano letivo ainda não aconteceu. Volto a pensar: tudo isso vai passar.
Hoje tivemos um recreio diferente na escola: fomos convidados a irmos fantasiados para a escola, comecei a ver as pessoas fantasiadas sorrindo com olhos, mas sorrindo. O recreio estava cheio, com muitas pessoas circulando, com música alta rodando, muitos alunos fantasiados, e muitos profes também. Hoje foi o dia que mais me senti próxima da vida que tínhamos antes. Pela primeira vez depois de tanto tempo não tive medo de estar em meio à um número maior de pessoas, tirei fotos com os grupos fantasiados, foi leve, foi feliz. Mas depois de circular pela escola e ver aquela alegria toda, aquela energia boa de gente reunida, acabei indo para minha sala e chorei. Parece que agora sim… tudo passa! Tem como não chorar?
Essa semana uma colega de trabalho postou uma foto que mexeu muito comigo: um quadro, de uma sala de aula, todo cheio*. Era uma aula de música. O quadro estava cheio desde março de 2020. 1 ano e 7 meses.
Aquela lição provavelmente está impregnada pra sempre no quadro.
A imagem me causou algo que não sei explicar, uma sensação que estamos parados naquele março e ao mesmo tempo sabemos o quanto andamos, aprendemos, sofremos, perdemos ou ganhamos desde lá. Muitas “lições” atravessam aquele quadro analógico. Os movimentos de retornar têm mostrado uns “antes” e “depois”, têm nos lembrado muito de como era o corpo de antes, sem as cicatrizes que esses quase dois anos fizeram. Fizemos linhas e linhas e linhas para costurar a vida quando ela se fez talho. E vez ou outra sobrava linha da sutura pra virar bordado.
*Acho que a ideia de “quadro cheio” só faz sentido na escola.
Derivemos.
O relógio segue. As folhas dos calendários seguem sendo riscadas, trocadas. O tempo ainda corre (pelo menos algum tempo). Mas é o mesmo tempo? Talvez fossem precisas outras horas e outros meses, outros calendários mesmo pra encaixar esse tempo.
E vai passar. É o que sabemos do tempo. Ele passa.
Mas para onde?
E, talvez mais importante, aquele pensamento que invade esse tempo entre uma lágrima e outra, ou entre um acolhimento da angústia alheia e outra (em meio a angústia própria, ou talvez a essa grande angústia que compartilhamos): vai passar, mas enquanto isso? Como a gente vive, aprende, trabalha, e se prepara para um outro tempo, para um futuro que virá, nesse presente que ainda dura? Ainda dura, e tem coisas que precisam esperar que o tempo passe. Como fazê-las existirem enquanto esperam?
Talvez seja algo de voltar aos instantes que quebram com os calendários e os relógios. Dizem que os feriados e dias festivos eram um escape ao tempo normal, uma coisa que era ditada pela ordem do tempo, mas lhe escapava. Talvez as fantasias e os encontros com elas façam isso – abram um espaço no tempo, para viver ainda uma outra coisa, não só isso que passará. Ritmos, respiros. Vai passar. E enquanto isso, cavoquemos o tempo para derivar nele outros tempos de encontros, fantasias, vida. E até choro, que é da vida.