Aviso de incêndio! Nosso serviço de memórias informa: essa plataforma está sendo utilizada por forças estranhas. Chegou até nós, por escrita hieróglifa, a mensagem que se segue. Ainda não sabemos como tais acontecimentos tornaram-se possíveis. Parece-nos que intercâmbios do futuro, via aplicativos que produzem um curtocircuitar temporal, tornaram comunicáveis experiências inéditas com dimensões subterrâneas de máquinas de guerra… “resta-nos agarrar Kairós pelos cabelos”[1]
Estão abancadas em volta de uma escrivaninha, situadas em um espaço subterrâneo, duas mulheres. Mãe e filha. Jogam xadrez. A mãe parece pensativa. Está sentada com pernas cruzadas, parada, com uma das mãos no rosto. Cobre levemente seus lábios, como se pensasse. E balança a cabeça vagarosamente. Sua filha, Greta, produz certa agitação na cadeira, de frente à mãe, donde encontra-se meio sentada, pois estica seu corpo: um dos braços parece buscar uma espécie de animal de estimação e traçar-lhe uma carícia. Suas pernas e pés, tentam alcançar uma pequena entrada de luz que atinge o subterrâneo, não se verifica de que forma. Uma luz quente. Como fosse uma réstia de sol. De repente, a filha levanta-se e fita a genitora. Diz-lhe, balbuciante: “Xe-que-ma-te!”
A mãe levanta o rosto. Mira a filha, que lhe nutre enorme afeto nos olhos. As duas parecem querer sorrir. Mas há certa tensão experimentada. Podem a qualquer momento ter que deixar o local. Parecem esperar o sinal de explosão e, na encruzilhada do século[2], tentam frente a frente, encontrar o que o tempo inscreveu nos seus corpos e rostos.
Lá fora, estão: o clã de criminosos, a quadrilha dos conspiradores, a camorra de consumidores[3]. Elas sabem que é hora de parar o jogo, mas não a jogada. São sempre múltiplas as saídas[4], por mais que as entradas pareçam determinar algo. Escutam um sinal, não o da explosão, mas aquele que avisa que é hora de trabalhar. Levantam-se. Separam-se. Cada uma habita um espaço, frente a uma escrivaninha própria. Antes de iniciarem suas atividades, cada uma em seu local, entreolham-se e despedem-se com olhares de cumplicidade. São professoras.
Em suas escrivaninhas, cada uma aciona uma espécie de computador sem cabo. Em torno de suas mesas, papéis, escreventes, blocos, livros estranhos. Capas feitas de material indiscernível. Aquelas capas alteram a penumbra do lugar, ainda aquecido por aquele raio que insiste em entrar sem permissão e lembra, às duas mulheres, que devem lutar contra certa infelicidade produzida. Aquelas capas. Exalam, como que de repente, um perfume[5]. Ajudam a manter aquecido aquele subterrâneo sombrio.
As mulheres ligam seus computadores. Colocam seus fones de ouvido. Conversam. Certa altura, já não se reconhece o que fazem: se riem, se ensinam, se ralham, se buscam, se conversam, se calam. Parece haver outros, todos conectados, imagens trêmulas, com diversas interferências ruidosas, alguma música ao fundo… no final, escutam. São algumas horas. Longas horas. Vagarosas horas. O olhar atento das mulheres, frente àqueles dispositivos disparatados, é instigante. O que será que conversam, que tramam? Que trocam? Que amam? Olhares esgueirantes… parecem procurar por gestos. Gestos.
Interrupção. Aviso de incêndio, primeira explosão. Mulheres largam tudo rapidamente, abandonam seus parcos pertences, dão-se as mãos e procuram uma outra fenda para esconderem-se. Abraçam-se. Não podem chorar. Devem ficar atentas, corpos tesos. Podem precisar movimentar de formas insuspeitas. Aguardam passar os efeitos da primeira explosão.
Seus corpos fazem das tripas, coração. Agarradas, por alguns segundos, permitem-se fechar os olhos.
Aos poucos, os destroços e barulhos da explosão começam a dar sinais de arrefecimento. O ar é tépido. É como rebentar uma amarra ou, paradoxalmente, estar lançado a alto-mar aberto, sem bússola, sem navio de porte, e num impulso, como jogar-se além da barreira, as duas se lançam para fora do buraco escuro. Atingem novamente uma parte comum do abrigo subterrâneo. Seus apetrechos estão fora do lugar, por causa dos tremores da explosão. Os materiais estão misturados, empoeirados, alguns com rachaduras, outros ainda exalam cheiro de mar. Aquilo que balança abruptamente também, às vezes, faz acordar.
Despertas, mãe e filha, não se desesperam. Já experimentaram outras explosões, antes dessa. Reconhecem o toque de alvorada. Pressentem que o tempo passa. Restam em silêncio, alguns minutos. Os bichos de estimação aos poucos começam a procurar por elas. A explosão se foi. Embora se esteja em aviso de ruína. Aturdidas colocam seus corpos em repouso. Como se aquele triz de acontecimento tivesse feito o tempo esticar-se sem precedentes.
Lá onde a vida empareda[6], as mulheres dão-se as mãos. Sabem como gestar novos futuros, ainda quando não sabem nada. Mas também não negligenciam as fogueiras, que estão sempre acesas. Estavam despertas demais para terem medo. Ambíguo mistério.
Depois de algum intervalo, começam achar algum movimento no espaço pequeno donde estão a existir, esperando outras manhãs plenas de sol e de luz. Seus corpos táticos já não são mais puramente humanos. São híbridos. Bichos rastejantes, funções supersônicas, espreitam-se com a força incrível de formigas gigantes. Falam tão baixo e em códigos, que parecem inventar uma linguagem mística. Uma honra sem nome[7].
“Quem poderia distinguir nossos rostos?”[8]
[1] FERRAZ, Maria Cristina Franco. Kleist para o presente. IN: KLEIST, Henrich von. Sobre a fabricação gradativa de pensamento durante a fala. São Paulo: N-1 edições, 2021.p. 29.
[2] AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? Rio de Janeiro: Argos, 2009.
[3] BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. Magia, técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
[4] DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed.34, 2008.
[5] LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
[6] PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. São Paulo: Globo, 2013.
[7] LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
[8] LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988. p. 123.
“Lá onde a vida empareda”, damo-nos as mãos! Belíssima imagem que me faz lembrar do que estamos vivendo nas escolas virtuais e híbridas que ora habitamos! Estamos a gestar futuros por entre os destroços pandêmicos mas saberemos guardar os restos necessários que nos farão lembrar do que se passou para que tracemos trilhas consistentes o suficiente para seguir fazendo a história de nosso ofício docente, para seguir fazendo história…não nos adaptaremos, nos “des”ajustaremos por entre tudo que nos embreta e empareda…saberemos esgueirar-nos por entre as artimanhas que apequenam nossos horizontes!