Cada um de nós é constituído de memória-fragmentos que nos atravessam diariamente, nos ajudando a construir novos significados para nossa vida. O movimento de escrever sobre nós mesmos é uma forma de nos reencontrarmos com nosso eu interior, revisitando caminhos percorridos e vividos que foram fundamentais para nos tornarmos o que somos hoje.
Recordo-me que em março de 2020 a escola em que trabalho mudou de uma forma brusca e inesperada, porque com a circulação do novo coronavírus, todos tivemos que ficar em casa, em isolamento, o que gerou muitas incertezas e dúvidas de como seriam os próximos dias.
Como professora de uma turma do 5º ano do Ensino Fundamental, em uma escola do campo no município de Domingos Martins/ES, logo me perguntei como iria ser o meu trabalho enquanto professora, já que a escola ficaria fechada e teríamos que lecionar por meio do uso de variadas ferramentas tecnológicas.
As reuniões que antes aconteciam de forma presencial, passaram a ser realizadas por meio do Google Meet, na qual todos nós tínhamos que dialogar a respeito dessas mudanças que estavam acontecendo e como iríamos continuar nosso trabalho pedagógico diante dessa adversidade nunca antes vivenciada.
Em cada reunião que acontecia, éramos provocados a pensar em uma reestruturação de nosso plano de aula para adequar a essa nova realidade que estava sendo imposta. Em meio a esses atravessamentos, comecei a me perguntar como se daria meu trabalho enquanto professora, pois, conhecendo meus educandos e suas famílias, sabia que a maioria não possuía computador, internet, tendo, somente o smartphone dos pais como única forma de comunicação.
Em poucos dias, minha cozinha se tornou minha sala de aula, meu local de trabalho, pois passei a utilizar a mesa como apoio para meu computador e livros, produzindo naquele espaço meus planos de aula e minhas atividades escolares. Por estar em casa o tempo todo, minhas refeições aconteciam na frente do computador, pois em algumas vezes, estava em meio a reuniões que se estendiam durante horas, discutindo e dialogando alternativas para que os educandos continuassem a aprender, mantendo contato com a escola.
Para que as famílias pudessem ter acesso as atividades e um canal aberto de diálogo com todos nós professores foram criados os grupos de whatsapp para ampliar a comunicação e aproximar a família da escola.
A criação desses grupos se apresentou como uma estratégia para que as atividades pudessem chegar até os estudantes, mas iniciou-se aí um processo que gerou cansaço e estresse para mim.
Digo isso porque meu telefone não parava de tocar, eram muitas mensagens, ligações, estudantes querendo tirar dúvidas, a equipe pedagógica constantemente nos pedindo documentações e marcando reuniões online que precisávamos participar.
Mesmo a escola criando um horário para atendimento das famílias e dos estudantes, como relatei, a maioria tinha somente o smartphone dos pais e por isso, as mensagens chegavam em diferentes horários e principalmente a noite, quando os pais chegavam do trabalho, assim, muitas mensagens chegavam e ligações eram recebidas em diferentes horários, exigindo de mim a disponibilidade em poder atender e auxiliar nas dúvidas.
Com isso, minha vida pessoal e profissional se entrelaçou de uma forma que passei a me dedicar em período integral para as atividades escolares. Como alguns estudantes faziam as atividades e enviavam as fotos para o meu celular, precisava fazer a devolutiva por meio de áudio, vídeo chamada ou por escrito e, após essa intervenção, apresentar as imagens para a equipe pedagógica da escola para comprovação de nosso trabalho e da presença do estudante.
Algo que sempre me entristeceu foi que a secretaria de educação nunca nos perguntou se tínhamos computador e internet para atender aos estudantes, pelo contrário, sempre nos cobraram muito, tínhamos que interagir nos grupos de whatsapp para comprovar nosso trabalho, o que me deixou entristecida, porque pelo fato de estarmos em casa surgia a dúvida se realmente estávamos trabalhando, precisando sempre comprovar o nosso trabalho.
Muitas vezes, queria apresentar aos estudantes os conhecimentos por meio de vídeo aulas ou até vídeos do youtube, por exemplo, mas estava aí um grande obstáculo: a maioria não tinha acesso à internet e quando tinha era à noite, fora do meu horário de trabalho, por isso, grande parte das atividades se limitava a leitura e escrita, abordando ali conhecimentos e explicando as dúvidas para aqueles que procuravam por meio do whatsapp.
Situação bem diferente quando estávamos na escola, porque posso levar esses vídeos para os estudantes e promover discussões com eles, o que acontecia raramente nesse período de pandemia, pois nem todos tinham acesso à tecnologia.
O ano de 2020, por meio do trabalho remoto foi muito cansativo para mim enquanto professora, pois foi preciso o uso constante da tecnologia por meio do smartphone e do computador, exigindo de cada mim horas de dedicação e participação em reuniões online. É nítido que a carga de trabalho aumentou muito e o fato de vivermos em isolamento social, tornou a nossa casa um local de descanso e de trabalho, me provocando a fazer essa separação, o que na maioria das vezes não aconteceu, pois para dar conta de muitas atividades e documentos burocráticos, tive que trabalhar também no final de semana.
Nós professores sempre trabalhamos muito, mas a pandemia ampliou nossas relações, pois eu cheguei até a casa de alguns dos meus educandos por meio da tecnologia, mas, isso tudo me fez perceber que ainda existe muito a se fazer enquanto escola para que todos tenham acesso ao saber, principalmente nos espaços campesinos, onde devido a geografia, a tecnologia ainda não chegou.
Essa nova forma de conceber a educação em tempos de pandemia também me motivou a estudar mais, pois, por meio de todas as discussões dentro do cotidiano escolar, percebi o quanto eu ainda preciso estudar, ampliar meu repertório de leitura e conhecimento dos aspectos que norteiam a escola, por isso, mesmo diante de algumas dificuldades, a ampliação dos diálogos foi positivo e me motiva a continuar estudando, pois preciso ser pesquisadora no ambiente educativo em que atuo para poder contribuir com a educação, que está em constante mudança.
Oi Girassol! seu relato é comovente e nos faz reafirmar uma hipótese: nosso trabalho precisou ser redimensionado e para isso seria necessário mais conversas entre nós e apoio das politicas governamentais, o que não está acontecendo de forma satisfatória. A situação é realmente muito difícil! Estamos trabalhando muito mais e ainda temos esse assédio moral quando nossa chefia imediata exige comprovação de trabalho, dando mostras de desconfiança. Mas continuamos resistindo, criando estratégias para enfrentar essas adversidades! Dialogando e trocando experiências poderemos criar outras normas de trabalho de forma a nos fortalecer nos coletivos!! A luta continua Girassol! Como vc mesma disse, narrar nossas experiências é uma dessas estratégias.
Oi Beth! Esse espaços de diálogo aqui é um fortalecimento para nosso trabalho educativo no cotidiano, precisamos sim falar de nossas angústias, vitórias, conquistas… porque juntos somos mais fortes para criarmos, como você mencionou, novas estratégias para nos fortalecermos. A luta continua sim e esse espaço já é um importante passo!
Olá Professora! Seu relato evidencia uma intensa mudança nas estratégias já conhecidas para realizar seu ofício. Pode-se sentir a intensidade da experiência de rapidamente ter que encontrar outros meios para trabalhar e, ainda, de ter que fazê-lo em meio a escassez de recursos adequados. Isso sem falar na sobrecarga de afazeres docentes e domésticos! As professoras, em especial, tem sofrido muito tais impactos! Fiquei pensando em uma certa solidão enquanto lia sua história…que importante seria poder compartilhar com seus pares os desafios de trabalhar na pandemia!
Com certeza Fernanda precisamos nos reinventar dentro dos contextos que estamos vivenciando. A oportunidade de falar aqui já é um grande caminho, mas com certeza precisamos criar espaços de diálogo como esse em nosso cotidiano, todos nós professores precisamos ser ouvidos, cada um de nós tem experiências que ecoam para serem compartilhadas!